domingo, 24 de março de 2024

25 de Abril de 1974

 Para os meus netos Vicente e Henrique 

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen in 'O nome  das Coisas'

Este poema resume o que a maioria dos portugueses sentiu à medida que se foi apercebendo que 'a liberdade estava 
 passar por aqui '.

Vivíamos  num país sem liberdade. Politicamente não éramos livres de expressar a nossa opinião.  As eleições eram uma farsa, onde quase só votavam os que concordavam com o regime. Só  havia um partido político: a união nacional. 

Portugal era um país que mantinha ainda as suas províncias ultramarinas, quando a maioria dos países europeus já tinham dado a independência aos povos que a reclamavam.

As províncias ultramarinas eram: 
Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, Timor e Macau.

Salazar governava o país quando a guerra pela independência começou  em Angola,  Moçambique e Guiné.  Os militares foram convocados e várias  gerações de jovens partiram para a guerra. 

O vosso avô e o meu irmão estiveram 4 anos em Angola. Todos foram chamados.  Alguns fugiram antes de serem chamados

A guerra parecia não ter fim. Os militares começaram a conspirar contra o regime. Queriam o fim da guerra e a liberdade para os povos das colónias e para Portugal. 

Os militares estavam bem organizados e conseguiram combinar tudo em segredo 
apesar da polícia política, a PIDE, estar muito activa e atenta.

Pela calada da noite a 25 de Abril de 1974 os militares quando ouviram a música 'e depois do adeus' e mais tarde 'a Grândola, Vila morena, que estava proibida de passar na rádio, abandonaram os quartéis e puseram-se a caminho de Lisboa, com os seus chaimites. 

Quando acordámos soubemos logo que  os militares tinham cercado Lisboa e tomado os locais mais decisivos para a vitória da revolta:
 Ministérios, aeroporto, quartéis,  rádios e RTP. 

Nas rádios os militares pediam à população de Lisboa para se manter em casa, não  saír à rua pois poderia haver uma contra ofensiva do regime em funções e ocorrerem mortos que queiram  evitar a todo o custo.

Mas os lisboetas não obedeceram.  Foi tudo para a rua na ansiedade de participar em algo único e irrepetível. 

Era dia de trabalho.  Liguei para a TAP. Não sabia se tinha que ir trabalhar. Um colega disse-me:
Não  venhas! O aeroporto está  fechado e há militares por todo o lado.

Não  fui de manhã, mas à tarde não  resisti e fui. Queria participar de alguma forma e ver com os meus olhos  o que se estava a passar.

A população estava na rua a acarinhar os militares a oferecer sandes, fruta, sumos, leite... e cravos vermelhos.

Nem todos os militares aderiram. Alguns poucos, ofereceram resistência, mas acabaram convencidos e renderam-se. A PIDE  também resistiu, mas acabou vencida.
O presidente do conselho de ministros
 Marcelo Caetano foi enviado para a Madeira e depois autorizado a ir para o
 Brasil.  O presidente da República,
 Américo Tomás acabou também por ser
 autorizado a refugiar-se no Brasil.
Não  foram julgados.  Os militares não
 queriam vinganças. 

Os dias que se seguiram foram de festa colectiva com os militares no comando.

Aproximava-se o dia 1 de Maio,  dia dos trabalhadores.  Todos fomos chamados a uma grande manifestação. Nas ruas cheias de gente feliz, cantáva-se a Grândola, e outras canções  de José  Afonso.
Chegados ao estádio 1  de Maio sentei-me na relva.  Entretanto ouviam-se assobios. Estava a entrar no recinto Mário Soares, o secretário-geral do partido socialista. 
Ao meu lado sentada estava uma ex colega do liceu. Ela disse-me:
- Não concordo com os assobios. Não se tratam assim os convidados. 
Fiquei revoltada.
- Nesta manifestação não há convidados. Todos temos o mesmo estatuto.
Era comunista. Sentem-se donos de todas as lutas sindicais.

Foi o início das grandes lutas partidárias. 

E assim chegámos ao dia de hoje:
Em democracia, sem partidos políticos proibidos,  com eleições livres, com liberdade de expressão e manifestação. 
Já  não há peças de teatro, filmes e livros proibidos. As canções podem tocar todas nas rádios, concertos e arraiais. As mulheres beneficiam de igualdade de direitos, que no antigo regime não tinham.

E ainda ...6 países, que falam português, atingiram também a liberdade e a independência,  graças ao 25 de Abril .

Macau regressou à  China pacificamente. 

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

                        Fernando Pessoa (poeta)





 

quarta-feira, 20 de março de 2024

 Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro
nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um
ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes
verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um
aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade
in Os Amantes sem Dinheiro