sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Ary dos Santos * 7 de Dezembro de 1937 - 18 de Janeiro 1984

Como se fosses noite e me atirasses
Uma corda de músculos e rosas.
Como se fosses noite e me deixasses
Deslumbrado com todas as sombras,
Com todos os silêncios,
Com todos os passeios de mãos dadas com o impossível,
Com todos os minutos,
Os lentos, os belos, os terríveis minutos
Que se escoam com a angústia nas escadas.
Como se fosses noite e acordasses
Todos os olhares furtivos aos bancos vazios,
Todos os passos hesitantes que ninguém segue
Mas que deixam na rua deserta,
Na cidade ausente,
O arabesco triunfal dum arcanjo que passa,
O rasto vitorioso dum condenado que dança,
rindo dos deuses que o julgaram.
Como se fosses noite e arrastasses
O tule hierático e vermelho da cauda de todas as prostitutas
Que desafiam o mistério, roçagando,
A ganga de todos os operários
Que sofrem o mistério, fumando,
O cabeção ingénuo de todos os marujos
Que sonham o mistério, ondulando,
A renda esfarrapada, esvoaçante e preciosa de todos os invertidos
Que inventam o mistério, desesperando,
E a carne, o sangue,
O cheiro a suor e a sono de todos os vadios,
De todos os ladrões que dormem nas esquadras
E têm o mistério, ousando!

Ah! Se tu fosses noite e me atirasses
A um poço de membros e de raiva
Onde plantas carnívoras crescessem
E onde Deus - se existisse - talvez me abrisse os braços!

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