Ao Urbano Ta
vares Rodrigues
1 -
Vai deslizando a cidade
(cai a tarde)
entre duas noites gémeas,
tão eternas! Tão efémeras!
- como um corpo fatigado
(cai a tarde),
um corpo por entre dois
negros lençóis ...
Noite do céu, aconchega
bem o rosto da cidade!
Noite do céu, que tristeza
nos invade?
Noite do céu, nem na dobra
de luar do teu lençol
(ah! Que saudades do Sol!)
tamanha angústia soçobra.
Mas, insones, esquecemos
a noite que espezinhamos,
remadores olhando os ramos
das altas árvores da margem,
só atentos à paisagem,
sem ver o lodo nos remos
nem os pegos
- olhos negros
das águas que espedaçamos!
No desprezo a que o votamos,
range o lençol esquecido.
Ai de nós, que mal cuidamos
do perigo!
Noite funda das entranhas
intranquilas!
Noite funda das entranhas,
que venenos tu destilas!
E na tetas das colinas,
para nós, que leite ordenhas?
Eis que num primeiro andar,
quase a boiar sobre o Tejo,
a um papagaio empalhado
e a um milhafre pintado
num azulejo
lhes tremem, súbito as asas;
e antes que tremam as casas
buscam, aflitos, o ar.
Vem, ó Anjo tutelar
da luminosa, leviana,
mística, fútil, profana
cidade dos terramotos,
- vem, ó Anjo Jugular,
o terror dos próprios mortos!
2 -
Salta o esgoto,
cai o muro,
morre o porco
no monturo;
e no porto
o sussuro
dos navios
enche o escuro;
ardem corpos,
ardem blocos,
cresce o rio;
sobre os puros
e os impuros,
tomba o frio
prematuro
do futuro;
grasna o corvo
que assistiu
a um outro
terramoto.
Terramoto,
te esconjuro!
Só um coro
dentre o sismo
se ergue ao Todo
poderoso.
Só um coro,
dentre o cismo;
só um coro;
são os cisnes,
são os cisnes ...
Hino? Prece?
Nem o ‘strondo
destes troncos
o emudece.
Grito vão,
sem remorso
nem perdão,
sobre o dorso
deste mundo
inseguro ...
Terramoto!
Terramoto,
te esconjuro!
3 –
Impropérios e morte exclama o vento,
o vindo das entranhas que arrebata
dos prédios a raíz fasciculada
e distribui aos ventos o cimento
em pólen transformado. Oh! Que sangrento
o vinho que se espalha e sobrenada
à flor da confusão alucinada
destes corpos em cacho! – Turbulento,
avança pelas ruas já o rio ...
Sobre um resto de fé – magro pedículo!
- o medo é um cogumelo fugidio ...
Mas é tarde de mais! Gritam os ventos,
ante o súbito, sórdido, ridículo
coro dos excelentes sentimentos!
Por entre as trevas, sobre os escombros,
vamo-nos vendo, e encontrando
a própria voz. Que reencontros!
Que mãos silentes sobre os ombros!
Desse milhão e tal que fomos,
Quantos restamos? E até quando
a própria voz, sobre os escombros,
noutros iremos encontrando?
Ah! Foi precisa esta agonia
para afinal apercebermos
que tudo quanto dividia
as nossas vozes poderia
harmonizar-se em litania
aos moribundos e aos enfermos ...:
- que só na última agonia
irmãos e unânimes seremos!
Em sintonia com o Besugo, e com o autor do poema acima, sinto saudades do Sol, mas daquele “ que alumia e acalenta”, como conta o Besugo e não daquele que está transformado em “noite funda das entranhas” e que “destila venenos” enquanto “ordenha leite, para nós” bebermos, incautos, parafraseando David Mourão Ferreira.
Sem comentários:
Enviar um comentário